E eu sou privilegiado, o que há de gerar debates interessantes aos que os anseiem. Mas esse não é o foco de minha vã catarse por agora. voltemos à: eu odeio privilégios, e à minha pseudo-intelectual tentativa de tentar fazermos todos mudar.
Minha noite foi uma merda. Daquelas que ironicamente são como pesadelos para os que padecem de insônia como eu.
O dia foi pior ainda, seguido por todos os ônus da vida metropolitana, do trem lotado à falta de educação cotidiana. Eu só queria mesmo era um suspiro do mais puros dos éteres, minha cama e um copo d’água. E assim começa a história.
Estou eu voltando para casa, as nuvens negras pairando sobre a mente como abutres, esperando o momento certo de serem presenteados com meu desfalecimento. E então passo pelos protagonistas deste conto, C. e M..
Notem: eu sou apenas um, por mais forte que eu possa ser, eu não sou 15, logo desviei prontamente do grupo e segui meu caminho, até que por motivo incerto, no meio da porrada de caras tatuados com seus cigarros e garrafas vazias, crianças. Puta que me pariu, crianças, são só crianças. Minha mente haveria de me torturar dos mais diversos e criativos meios, optasse eu ignorar.
E assim, meia volta volver, me direcionei a eles.
– Ae mermao, vocês estão com fome? precisam de uma ajuda?
Prontamente me vira C., e me gruda enquanto me empurra pra longe do grupo (diga-se de passagem, com uma sutilidade ímpar). Ele põe seu capuz e olha pra trás, voltando rapidamente e me olha fixo nos olhos, ombros ainda colados um no outro.
– Tio, eu vo te passar a visão namoral, não da dinheiro pra gente.
– Nem se eu quisesse, eu to liso cara.
– Melhor, senão aqueles filha da puta, – me disse ele apontando pros maiores dos garotos – vão pegar da gente e torrar tudo em droga. Nós pode ir no Express ali?
– Claro mano, vambora po.
– Da só um dez comigo aqui então tio, – disse me chamando com a cabeça pra perto dele – ninguém vai mexer com você não.
E assim voltamos para o bonde do qual ele havia me afastado, e só então notei as barracas e panos desgastados disfarçando o chão, e os dando uma “cama” para relaxar.
– Eae tio, dá um troco aí pra nós, tamo com fom-
– Toma no cu mano, – interrompendo o outro rispidamente – baixa a voz que o tio já vai ajudar já ow – e se voltou para uma das barraquinhas, batendo nas finas “paredinhas” de plástico frágil – bora caralho, sai daí!
E saiu andando C. na minha frente, cara fechada esse tempo todo, seu capuz tampando-lhe até os olhos, expondo só uma cicatriz no lado esquerdo do seu rosto.
– Tá ligado da visão que mandei né, tio? – estampando seu rosto de criança com um sorriso pela primeira vez desde nosso encontro – Esses cara presta não, fica só nisso. Tudo bem que eu não posso falar nada né…
– Você tá usando alguma coisa?
– Não não, sai fora. Mas as vezes eu bebo né, ai eu não sei o que vem depois sabe?
Nisso, me aparece M., com um dos sorrisos mais genuínos quem meus olhos já se depararam. Esbaforido, e com as bochechas vermelhas de seu imprevisto sprint ao para nos alcançar, ele me estende a mão, gordinhas como a de uma criança que deveria estar preocupada apenas com se seu time de futebol vai ganhar ou não.
– Oi tio! Vocês são rápido hein, ai caralho, to cansado – e com as mãos no joelho, só levantou o rosto para me presentear com outro sorriso, este, com seus claros dentes de leite ainda.
E assim atravessamos a rua conversando, C. me explicando como pararam lá e como não tinham família no mundo que ligasse para eles.
– A gente é isso aí que cê tá vendo tio. É resto, deixa jogado ai essa porra que se vira.
– Mas você também pode ajudar po, passa o olho nos menó, eles precisam.
– Menó eu também sou tio, e esse é meu irmão, só por isso, mas também já ta grandinho já, tem que ficar esperto.
A essa altura ja estávamos dentro do mercado. A moça na porta recuou bruscamente ao ver C. entrando (ocorrido que não lhe passou batido), de cara fechada, o silêncio falando por ele. M. entrou ao meu lado, ainda sorridente, e foi correndo atrás de seu irmão.
Lá dentro, C. me aparece com um guaraná na mão, abraçando os 2L como se fosse seu bem mais precioso.
– Tio, se não for pedir muito, eu não quero abusar né…
E assim meu coração foi estraçalhado, os fragmentos dispersos pela escuridão da realidade. Pelo palpável sofrimento e agonia incessante atrelada à luta por sobrevivência, por um prazer tão simples quanto um guaraná. Uma porra de um guaraná.
– Eu não tenho muito cara, mas o que der, vai dar. Relaxa, pega seu guaraná e vamo pegar coisas que de fato te sustentem, mesmo que por pouco tempo.
E de corredores a corredores, fomos buscando os víveres possíveis, com seu sussurrado mantra, “temo que dividir isso”, ecoando levemente pelos ares frios daquele dia.
Um dado momento, C. some, e M. me leva até ele no fim do mercado, encolhido com a cabeça afundada nos joelhos, as mãos se abraçando numa vã esperança de conforto, enquanto seu capuz ocultava qualquer emoção possível. Eu me abaixo e pergunto se está tudo bem.
– Tá sim tio, sabe só quando bate aquela fraqueza? Eu to tao cansado, acho que eu talvez sinta falta da minha mãe ou um caralho do tipo… – um breve silêncio toma conta, junto com a leve catatonia que lhe paralisava fitando o chão – Vai passar tio, relaxa, vamo indo.
Agora no caixa, ele me olha e pergunta
– Para quê isso tudo tio? Quê que cê ganha ajudando nós?
E mais uma facada me é dada na garganta, a desesperança e falta de fé no mundo e nas pessoas realmente já o consomem. O ser humano serve para o olhar de cima, isso quando o faz, ignorar é mais fácil. Põe na conta da mãe que não educou, de delitos que ele possa ter feito ou não, ou foda-se a culpa mesmo é dos políticos; no fim do dia, eles seguem invisíveis, os efeitos colaterais que, como todo bom metropolitano, aprendemos a não ver.
– Ainda existe pessoas que se importa com vocês, que querem que essa merda acabe C.. O mundo ainda não tá perdido.
Ele sorri, e me pergunta se podia pegar uma garrafa d’água e uma Fini. Eu digo que claro, e me surpreendo ao ver ele voltando com as menores das duas coisas.
– É para mim e pro meu irmão tio, o resto a gente divide. Eu e ele tamo com muita fome.
E em nosso último momento juntos, já fora do mercado, M. me pergunta qual é meu sabor favorito de Frutella, que da próxima vez que ele me visse, ele ia me dar uma. C. disse que me dava um oi com certeza se nos cruzássemos novamente. E então partiram de mãos dadas, as sacolas balançando junto com o ritmo de seus passos. Por agora, deveria tar tudo bem. E eu fui pegar meu ônibus, com a alma destruída
“O quê mais dava pra ter feito? Será que volto lá, e s-“
– Ae tio! Você se cuida hein! Boa viagem, e podepá que nós se tromba de novo aqui! Valeu!
Se apenas esse sorriso não sumisse pelo resto do dia.
Essa noite eu chorei como não chorava havia muito tempo. Eu chorei pelos meus privilégios que tenho. Eu chorei pelo mundo torpe, sórdido e vil que nós vivemos. Puta que me pariu, são crianças.
Deus, ou seja lá quem está no controle deste vagão descarrilhado, me ilumine em minha santa ignorância, com qual critério divino e majestoso foram escolhido os sortudos das vítimas. Crianças porra, crianças.
Eu deitei na minha cama, meu cobertor e meu cobiçado copo d’agua, as lágrimas e o horror do nosso mundo ainda me afogando. O mundo está todo errado. Eu com tudo e desejando o fim, buscando respostas para perguntas que só me assustam, e meninos felizes com um guaraná.
Privilégios existem sim, em seus diversos nuances, e como mudar o mundo parece utópico demais, comecemos por nossas bolhas. Um sorriso, uma gentileza, uma ajuda à quem precisa, pois infelizmente não vivemos como iguais, mesmo sendo. Agradeçamos ao que temos, mesmo não sendo tudo que gostaríamos que tivéssemos.
O mundo é uma merda injusta.