Na definição mais simples do dicionário, Respiro é o ato ou efeito de respirar. Mas também pode significar, por metáfora, algo como uma folga, um descanso, uma trégua. Ou ainda, em semântica mais concreta, esse é o nome que se dá à abertura por onde sai qualquer fluido: ar, fumaça, vapor, líquido. Um respiradouro. Todas essas descrições dizem muito a respeito do novo álbum da banda Scalene, que chega agora às plataformas digitais via slap, selo da Som Livre (o disco físico chega em agosto).
Quarto disco de estúdio do quarteto brasiliense, que completa 10 anos de carreira em 2019, Respiro foi gerado como reação aos tempos inflamados em que estamos submersos. Todas as 14 faixas do álbum, incluindo nessa conta dois interlúdios instrumentais, foram escritas em movimento oposto à tensão e ao descontrole que comandam nosso cotidiano. Menos peso, mais espaço. A eficácia da delicadeza contra o monopólio do grito.
Em decorrência natural ao caminho aberto em magnetite (2017), trabalho anterior do Scalene, Respiro vem carregado de influências da música brasileira – da Bossa Nova ao Clube da Esquina. E as participações especiais vocais de Ney Matogrosso e Xenia França e instrumentais de Hamilton de Holanda e Beto Mejia fortalecem essa carga. Mas o novo álbum mantém – mais do que isso: aprofunda – a tradição da banda em correr várias vertentes da música do mundo, conciliando aparentes incompatibilidades. Se as canções nasceram todas no violão, os arranjos incorporam influências de post-rock, música eletrônica, R&B e trip-hop ao contexto brasileiro.
Formado por Gustavo Bertoni (voz), Tomás Bertoni (guitarra), Lucas Furtado (baixo) e Philipe “Makako” Nogueira (bateria), o Scalene fez a pré-produção de Respiro em Brasília, na casa-estúdio do produtor Diego Marx, também responsável pelos trabalhos antecessores do grupo. E, desde a fase embrionária, contou com a direção artística de Marcus Preto, nome ligado a álbuns recentes de artistas como Gal Costa, Tom Zé, Nando Reis e Silva. Versões demo de cada música foram criadas pela banda em Brasília e depois levadas para o estúdio Family Mob, em São Paulo. Ali, foram feitas as gravações oficiais entre os dias 18 e 26 de fevereiro. De volta a Brasília, instrumentos complementares foram adicionais.
Faixa que abre o álbum, “Vai Ver” ia se chamar “Eterno Brilho de Ilusão”. Em sua versão inicial, a canção se apoiaria mais no violão. Mas amigos e produtores comentaram a mesma coisa: “Essa música está linda, mas talvez seja legal tirar ela desse lugar comum da bossa nova”. A banda acatou a sugestão e reconstruiu a faixa com o produtor Diego Marx a partir de um beat e teclados. O também brasiliense Hamilton de Holanda arremata o arranjo com seu cavaco genial. Uma curiosidade: a cidade de Brasília não tinha nenhum Grammy até 2015, quando recebeu dois de uma vez: um trazido pelo Scalene, outro por Hamilton.
Com sua letra esperançosa e ao mesmo tempo realista, “Tabuleiro” reafirma o tom brasileiro de Respiro – sobretudo pela melodia. “Casa Aberta” foi inspirada por poemas haicai, tanto na estrutura quanto na intenção, e fala sobre se atentar às singelas e cotidianas coisas da vida. Tudo que a ansiedade e a ambição nos proíbe de enxergar. O fluxo foi tal que até sobraram algumas estrofes. O primeiro momento de respiro entre as canções do álbum surge no interlúdio instrumental “II”, um estudo de harmonias brasileiras mais tensas.
“Esse Berro esse Grito” já era intensa e doída. Ney Matogrosso chegou a atenuando ainda mais, com a sua interpretação e entrega. Uma influência de Vitor Ramil transparecia já na melodia, o que fez com que a voz de Ney se tornasse ainda mais necessária para acentuar a estranheza. Um arranjo de cordas foi escrito por Eduardo Canavezes. Quando ouviu a faixa finalizada para aprovar sua participação, o cantor foi direto: “Gosto muito. Estranho”. Alguma observação? “Não. É disso que eu gosto.”
“Percevejo” foi composta em Toronto. Gustavo entrou em uma loja de instrumentos antigos, pegou um violão ao acaso e começou a tocar. Mas as cordas estavam em uma afinação diferente, por isso a harmonia saiu do jeito que é. “Ciclo Senil” também começou no violão, assim quase tudo nesse álbum, mas virou algo muito diferente depois de ganhar as intervenções da banda. Segundo Gustavo, talvez essa sonoridade seja um spoiler de onde a Scalene pode estar no próximo disco. A letra segue com as reflexões da banda sobre o conservadorismo, a intolerância e cegueira que assola nosso país.
“Sabe o que foi?” entrou no repertório dias antes do Scalene entrar em estúdio e foi toda montada e arranjada durante a gravação. Por sua pegada R&B, é uma espécie de prima de “Furta-Cor”. A letra trata daquele “egoísmo” de se colocar em primeiro lugar numa relação para não decepcionar a si mesmo e, consequentemente, o outro. “Furta-Cor” é canção confessional, com letra forte de Tomás. A interpretação de Xenia França, explorando os graves da voz como não costuma fazer em seus trabalhos, elevou a faixa a um lugar que a banda não alcançaria sozinha.
“Assombra” é uma música que o Scalene nunca achou que faria, seguindo o desafio de transformar algo muito intimista em algo pulsante sem que isso derrube a melancolia de sua essência. De estrutura simples, com acordes que se repetem, a faixa ganhou um arranjo cheio de detalhes que vão sendo absorvidos aos poucos a cada audição. “Ilha no Céu” era um dedilhado folk, depois transformado em samba, um pouco influenciado pelo João Gilberto que Gustavo ouviu durante o processo de composição do repertório. A letra aborda os ciclos geracionais de forma despretensiosa. Beto Mejia, da banda Móveis Coloniais de Acaju, participa tocando flauta.
O interlúdio “III” foi feito na cama do apartamento da tia de Gustavo, em São Paulo, com vista para a selva de concreto e ouvidos para barulheira dos carros da cidade. Por mais que seja executada com violão de nylon e soe brasileira, o compositor buscava no estudo umas sensações harmônicas à maneira do trio americano Khruangbin. “O que É Será” nasceu com urgência e angústia, depois de uma conversa sobre como quase tudo em que nos apoiávamos até agora – instituições, noções, crenças – está desmoronando. Para o bem e para o mal.
A capa de Respiro foi criada pela artista plástica Alice Quaresma, brasileira que vive nos Estados Unidos. Segundo ela, foi desenvolvida dentro da ideia de novos caminhos. Um novo projeto da banda que traz novas experimentações e descobertas. A arte da capa se desenvolveu através do encontro de linhas feitas à mão sobre uma imagem do horizonte que registra o tempo. As linhas entram no campo do imaginário e das possibilidades. Já a imagem remete ao registro do que já aconteceu. O horizonte é uma referência a novos caminhos e a ida a um lugar desconhecido, com a esperança de novas oportunidades. Neste caso: som, arranjos, parcerias, música e encontros. A imagem foi tirada com o sol nascendo, trazendo mistério e profundidade no vazio que aumenta além do horizonte.